- Eu te mandei um texto esses dias, você viu?
- Não gosto dessas coisas eletrônicas, mesmo facilitando nossa vida perdem o total encanto da escrita...
- Eu sei.
- É, eu sei que você sabe. E sei também que você se adaptou a isso melhor que eu.
- Nós não somos tão velhos assim, afinal.
- As vezes eu acho que somos.
- As vezes eu também.
Silêncio. Ele respirou fundo e então continuei.
- Então você não leu?
- Não.
- Você iria gostar.
- Mais sexo ou mais amor?
- Notoriamente sexual.
- Estou lendo Dom Casmurro. Sim, mais uma vez.
- Para lembrar de mim?
Ele riu debochado, virou o fundo de whisky no copo e então se preparou para levantar e esticar a mão até a garrafa. Abaixou o peito até estar com o rosto na altura do meu, encostada na cadeira. Descalça e com as pernas para o lado. Esticando o braço para que também enchesse meu corpo. Então me olhou nos olhos ainda ironizando mesmo dizendo a absoluta verdade.
- Talvez.
- Muito provavelmente.
- Muito provavelmente.
- É absurda a semelhança.
- Exagero seu me comparar a Capitu e você sabe disso.
Outro momento de silêncio, ele já havia posto os dois copos a nosso dispor em sua totalidade. Trouxe até um Marlboro que não sei ao certo porque, sempre está do lado dessa garrafa. E os dois por sua vez, sempre ao seu lado. Permanecia quase deitada na cadeira, equilibrando o copo na mesma mão que trazia e levava o cigarro da minha boca.
- Com você eu aprendi que as coisas vão muito além do que se vê. Que desconhecemos as razões que levaram alguém a algo.
- E até eu mesma desconheço meus próprios motivos.
- Você é regida pelo que tem entre as pernas.
- Também!
- Eu estou só brincando. Eu fui seu homem, lembra-se? Eu sei exatamente por onde você pensa e como pensa. Sexo é só parte do seu jogo.
- "Faz parte do meu show, meu amor."
Rimos mesmo sem achar tanta graça, nos olhamos com um carinho mútuo e isso mostrava ser hora de dar outro trago.
- Eu quero dizer, que ao ler esse livro todos só pensam se ela traiu ou não. Se ela presta ou não. O quão dissimulada ela é.
- E o quão dissimulada eu sou.
- Você eu já sei que é e muito.
- Santo Deus... O que dirão de mim?
- Você não liga.
- Não mesmo. E começa a me irritar essa sua maneira de me conhecer tão bem. Melhor que eu.
- E quando foi diferente?
- Não consigo me lembrar.
- Mas eu posso te dizer: Nunca. Desde o momento que você entrou naquele bar, desfilando suas pernas em cima de saltos e discutindo com todos. Colocando aquela bronca de sempre, apontando o dedo na cara de homens duas vezes maiores que você. Te achei louca a primeiro momento, depois lembrei que as loucas são as melhores na cama. Resolvi arriscar e cá estamos nós.
- Depois de muitas camas.
Hora de outro olhar cúmplice e então me lembrei de Capitu e sua história sem fim.
- Mas o que você dizia sobre minha amiga dissimulada?
- Dizia que eu aprendi a não questionar sobre isso.
- E o que você questiona?
- Sobre o amor que eles viveram, sobre a história deles. Sobre ser o meu livro preferido! Não sobre o erro dela, ela continua sendo uma mulher incrível.
- E eu sou?
- Definitivamente. Incrível e gostosa.
- Não sei como é fazer dieta, mas deve ser muito ruim comer algo gostoso e depois se virar com saladas.
- Vai se foder.
- Olha como você fala comigo!
- Isso não cola comigo, eu sempre falei com você como bem quis.
- E isso me excitava profundamente.
- No passado?
- Talvez.
- É? Cachorra!
Contorci o quadril levemente na cadeira e era minha vez de virar o copo que nem estava tão no final assim. Dei o último trago no cigarro já queimando os lábios e um pouco do dedo. Sempre fui desastrada demais para fumante, mas mesmo assim tentei. E consigo. Não sei ao certo porque penso em cigarros com tudo isso acontecendo e eu simplesmente não sabendo conter minha língua que coça por uma resposta venenosa ou apenas uma boa demonstração de habilidade. Abaixei as pernas e levantei da cadeira, então caminhei até a garrafa. O gelo já havia derretido por completo então bebi a cowboy. Enchi o copo e o virei em três goles intensos. Fiz novamente enquanto ele permanecia frio, me olhando a alguns passos de distância. Uma perna em cima do joelho da outra. Outro cigarro aceso entre os dedos que também seguravam o copo. Enquanto a outra mão sustentava o queixo e o dedo indicador desfilava por sua boca. Acendi outro cigarro e ao encher o terceiro copo, sua voz cortou o silêncio da sala me fazendo estremecer. Altamente grave e ainda assim sereno.
- Chega.
Confirmei com a cabeça sem sequer relutar, já estava alcoolizada e tinha impressão de sequer conseguir responder. Sentei no chão com o copo na frente, fumando o cigarro. Enquanto ele me olhava exatamente na mesma posição. As coisas começaram a perder o brilho e a cor e conforme tudo ia ficando um pouco cinza e opaco, meu corpo despencava levemente para trás. Não estava desmaiando, dessa vez, não. Só estava cansada em todos os ângulos. Mentalmente e fisicamente descansei o corpo na madeira gelada. Ele se assustou e ouvi sua voz nervosa vindo de encontro assim. Soando quente na minha barriga e subiu até o rosto. Ele estava em cima de mim perguntando como eu estava e eu só conseguia confirmar com a cabeça. Ficou preocupado, nunca se acostumou as minhas loucuras relacionadas a álcool. Levantei um pouco o rosto, a boca entreaberta procurando uma forma mais fácil de respirar. Os olhos cansados de tanto tentar enxergar. Senti as mãos firmes puxando o cabelo da minha nuca. Me fazendo levantar a parte da boca que só entreabria mais.
- Puta!
- Queria dizer "sua", mas eu não sou.
- Continua sendo uma.
- Pra quem eu quiser.
Soltou meus cabelos e se levantou com o mesmo sorriso debochado de antes, o mesmo sorriso de sempre. Foi a vez dele bancar o cowboy no whisky. Acabar com o masso de cigarro, fumando na janela. Me encolhi aos poucos na madeira dura e fria e permaneci entre cinzas e copos cheios, vazios e os desperdiçados.
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