Ela estava me esperando impaciente, tamborilando seus dedos sobre a mesa rústica. Eu passo deixando apenas meu sorriso, vou a balcão do bar e volto com minha cerveja. Dessa vez a beijo na testa, sento em meu lugar, sempre a sua frente. Respiro fundo.
- O que aconteceu?
- Não estou muito disposto a conversar, mas posso te ouvir.
- Os dias que você não está disposto a falar, são sempre os que você mais precisa desabafar.
- Então ajeite seus óculos, retire seu bloco e caneta de dentro da bolsa e anote.
- Odeio quando você se refere a mim assim... Sou sua amiga, não sua psicóloga.
- A diferença é que me atende em uma mesa de bar e só por isso aceito essa terapia.
Ficamos em silêncio durante algumas goladas. É inverno e meus dedos estão gelados. Quando desfaço-me da garrafa, os dedos finos de Júlia encontram minha mão. Ela encaixa as duas e aperta com delicadeza. Faz com a cabeça, me impulsionando a falar.
- Fui a uma copiadora, imprimir e xerocar algumas coisas. E eu não consegui explicar isso para a menina.
Ela ri e diz:
- Algumas pessoas são lentas assim mesmo... Isso te irritou?
- Não. Não é ela. Sou eu... Não ria! Eu acho que não falo mais essa língua. Olho para as mesas ao nosso redor e essas tantas pessoas falando de suas vidas, ou da morte da bezerra, eu não sei, eu não escuto. E se escutasse, também não entenderia... Só consegui comprar essa cerveja porque ele não me perguntou, apenas me deu... Eu só consigo fazer coisas no automático, na rotina, fora isso, nem uma Xerox! Você não está me entendendo, não é? Porque a falha na comunicação é recíproca. Eu não consigo mais me comunicar... Eu, que sempre falei tanto, que sempre li tanto, que sempre estudei tanto. Às vezes acho que foi bem esse o problema, gastei tanto as palavras, que como roupas velhas, elas puíram, se desfizeram, simplesmente deixaram de existir, sabe? E agora? Vou ser um bilhete de cinema que apagou a cor da tinta e será apenas um papelzinho amarelo e insignificante...
- Isso soou dramático.
- Eu sei.
Nós rimos, ela me rouba um gole da cerveja e então me encara de baixo, com aquele costumeiro olhar que me faz idiota por reclamar da vida. Esticou as mãos que permaneciam em seu queixo, apoiando o rosto, e com elas, abraçou meu punho gelado.
- Eu entendi o que você disse desde o começo. Eu sempre entendo o que você diz. E enquanto houver ao menos alguém que fale sua língua, você está a salvo.
- Obrigado por me salvar.
- Quem disse que você também não me salva?
Ela levantou com a conta na mão, pagou e voltou acendendo um cigarro. Levantei para acompanhá-la e quando chegamos à rua, puxei seu cigarro, arremessei no chão e pisei em cima.
- O que você está fazendo?
- Te salvando, ué.
Ri sem graça, mas ela riu mais um pouquinho. Bateu no meu ombro de punho para baixo, o soco saiu forte mesmo assim.
- Isso seria mais engraçado se você não desperdiçasse meu cigarro.
- Acende outro pra gente.
Ela confirma e acende outro. Seguimos em silêncio, entre alguns postes amarelados. Eu voltarei pro cômodo igualmente ou até mais frio, entrarei nas minhas bagunças catastróficas como minha mente, esticarei a calça de moletom velho, mexerei os dedos dentre as meias, arrastarei a barba pelo travesseiro. O caos será o mesmo, mas sempre é, porque lá estarei eu, sozinho e pensando desordens. Diferente de agora que Júlia sopra a fumaça do cigarro para o outro lado, entra em meu abraço e se esconde no meu casaco. É como se ela me olhasse debaixo a todo o momento, repetindo que não há qualquer tipo de problema no mundo. Mesmo que eu funcione em outra sintonia, mesmo que eu não saiba da onde vim e que língua falo, mesmo que nem rabiscar mais eu saiba e morra de fome por ser incapaz de escrever outro romance, mesmo que tenha sido engolido por um hiato literário e por fim, mesmo que não saiba mais quem sou. Se ainda assim, permanecer ao lado dela, eu sei que estarei bem. Seus olhos me garantiram.
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