- Eu não posso acompanhar essa sua vida maluca, sabia? Você faz uma faculdade que não gerará um terço do que precisamos para manter essa casa. Fica sentada enrolando essa merda como se o mundo fosse acabar em cannabis sativa. Eu quero alguém que divida as coisas comigo, que cresça comigo. E não que fique estagnada em uma posição. Será que você consegue me entender ou está chapada demais para isso?
- Você está me ofendendo.
- Eu espero que esteja. Porque com todos os meios delicados, educados e carinhosos você foi incapaz de entender. Eu amo você! Eu quero a minha vida do seu lado, mas assim nós não chegaremos a lugar algum. E deixo claro: Eu não sou uma camicaze. Eu não irei em direção a morte dando risada assim como você.
Nessa ponto ela derrubou toda a parafernália que estava em seu colo, no chão. Encolheu suas pernas magras e as abraçou. Começou um soluço baixo que logo se transformou em choro calado. Sentei no chão para a encarar mesmo sentindo uma vontade absurda de que lhe abraçar e cuidar da menina que jurei amar. Afastei qualquer sentimento amoroso em busca de levar essa situação até o fim. E levei.
Ela então se recompôs e começou calmamente como quem tem todo tempo do mundo para contar histórias. Na minha época havia diferente entre história e estória, mas abolimos isso na busca de simplificar e tornamos tudo igual.
- Eu entrei nessa vida muito cedo, sabe? Sim, eu sei que você sabe. Mas eu peguei sua mania de perguntar, que por sinal é altamente irritante. Parece que está conversando com uma pessoa de sérios problemas mentais. - Ela riu mesmo sem achar graça e então continuou após respirar fundo - Aos 16 anos eu me apaixonei por uma mulher de 21. Na época eu estava bem com os meus baseados, matava sempre as últimas aulas e ia beber, eramos eu e meu Marlboro amigos inseparáveis. Tudo bem, essas três coisas são plenamente aceitáveis, não são? Isso até você faz. E sim, eu estou te chamando de careta. Como sempre pensei e nunca quis falar. Aí essa menina me apareceu e os anos letivos começaram a se repetir na minha vida. Não frequentava sequer o primeiro horário... Um certo dia meus pais se cansaram do albergue que fazia minha casa enquanto na verdade minha vida era migrar de bar em bar. Meu pai resolveu trancar a casa inteira e me deixar lá dentro arranhando a porta, gritando para que Deus ou o Diabo me tirasse dali. Ela havia me digo que teria uma festa na casa de tal amigo e que todos os conhecidos iriam. E foram. Fiquei imaginando o pó na barriga nela enquanto eu cheirava. E a bandeja de prata que passava em todas as mãos e os mesmo inalavam toda cocaína... - Até então ela se referia ao pó com a naturalidade que se dá a um sorvete de flocos. Então parou e novamente inalou o ar como quem procurava forças para continuar. Os olhos miraram a luz central da sala. A cabeça erguida para cima tentando esconder inutilmente os olhos marejados - O dono da casa costumava fazer esse tipo de festa e provavelmente devia o fornecimento de algumas. Não sei ao certo por quanto todos se foram. Mas sei que foram. Enquanto eu xingava meu pai de todos os nomes em casa por não me deixado ir, do outro lado da cidade tiros ecoavam por toda residência. Ela levou um na barriga, exatamente aonde eu estaria cheirando se estivesse lá. Uma chacina completa, obviamente sem ninguém para contar a história. Como se precisasse. Como se não fosse terror o suficiente escutar a narrativa de quem viu somente o resultado de tamanha destruição. Mesmo depois de saber, eu culpava meu pai por ter me deixado trancada em casa. Talvez eu o culpasse exatamente por isso. Por não querer ser a sobrevivente dessa história tão macabra. Ou só estava incrédula. Ninguém soube dessa história, o caso foi altamente abafado. Não foi assuntos nas rodas, acho que ninguém ganharia em saber de tamanha desgraça. O ponto é que muitas atitudes foram tomadas por mim. Eu me afundei de uma maneira que sinceramente não sei como fui capaz de levantar. Desde de raspar a cabeça a espancar alguém sem motivo aparente. Meus pais eram chamados todos os dias na escola enquanto eu me afundava nessas drogas que me corroíam. Nada parecia aliviar a dor e a lembrança. Até que você apareceu. Toda menina naquele vestidinho floral, falando sobre política e religião. Eu adorava o seu toque de celular, e coloquei a mesma música no meu para mostrar que tínhamos algo em comum além do baseado que rolava nos seus dedos finos. Fiquei observando como sua mão era delicada e acabei reparando como era o sexy o seu jeito de fumar até abrir aquele sorriso e explodir em uma gargalhada. Quem te visse naquele momento nunca acreditaria que é todo esse mulherão aí. Aliás, nem cara de lésbica você tinha. Pensei duas vezes antes de te encarar e quando pensei em desistir, foram os seus olhos que me arrastaram. Você não se parece com o meu tipo, você não tem nada a ver com o meu mundo. Eu sou 3 anos mais velha que você e não trabalho, sequer faço faculdade. Enquanto você revesa todo o seu tempo em um planejamento para sua vida futura. Enquanto você batalha para pagar o aluguel da nossa cara e eu gasto tudo fornecendo o baseado que você sequer fuma. Só reclama que a maconha não está verdinha... Vira o nariz para o lado e sai andando como se saísse do meu mundo também. Você está cansada? Eu também estou. Você me deixou tempo demais perdida e vagando por aí, agora que chegou não pode cobrar de mim que mude mais do que já fiz. E fiz. E faço. Todos os dias eu imagino uma bandeja de prata regada que me faça esquecer. Aí eu me lembro que não há mais o que esquecer. Que só a do que se lembrar e que eu quero memorizar cada pintinha e sardinha que você tem no rosto. Só você pode salvar o meu mundo, mas eu não vou te pedir para ficar. Mesmo te amando, mesmo te desejando. Mesmo sabendo que você me retirou de algo muito pior do que o que eu sou hoje. Eu tenho a te agradecer e como agradecimento eu estou indo embora, sem retorcer o nariz e sair andando.
- Por que você nunca me contou tudo isso antes?
- Isso soaria como uma mentira melodramática.
- Eu confio em você e confiaria na sua história mesmo sendo altamente insana.
- Eu sou insana.
- Eu sei muito bem disso. Acho que os problemas começam a partir daí.
- Já você é encantadora, linda, inteligente e aposto que fará uma ótima narrativa sobre essa conversa.
- Talvez. Mas eu quero mais. Eu quero fazer um livro da nossa história. Da sua insanidade a minha sensatez.
- E se não fizer sucesso? Você não terá dinheiro como eu e o que será de nós?
- Nós nos teremos. E mesmo quando o livro ameaçar chegar no fim, eu lembrarei que o seu mundo é uma coletânea. Uma coletânea insana.
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