Era quase meia noite, as ruas vazias e aquelas noites quentes de verão. Fui andando sem rumo certo, pensando em qual outro lugar encontraria alguma diversão fugaz que me arrancaria o pouco dinheiro que tenho e me daria uma ilusória alegria. Escuto um barulho atrás de mim e quando penso em me virar, sinto minha bolsa sendo arrancada com força de meus braços. Não tive tempo de pensar, meu reflexo pouco adiantou e não evitou que um garoto de bicicleta levasse as poucas coisas de valor que ainda possuía.
- Você poderia deixar o cigarro e a minha identidade, pelo menos? Por favor!
Gritei enquanto ele corria, sequer pensei em ir atrás. Nunca o alcançaria em cima desses saltos altos que custaram mais caro do que tudo que estava na bolsa. Escutei a risada dele ecoando pela rua, com certeza em resposta a minha pergunta. Resolvi voltar pra casa, dessa vez me perguntando como pularia o muro com essa saia e agradecendo por meu vizinho ter uma cópia da minha chave. Isso aconteceu depois que dormimos juntos algumas vezes. Na rua atrás da minha casa meus pés doíam e quando resolvi tirar o sapato, o salto prende na calçada de paralelepípedo até quebrar. Posso me perguntar mais uma coisa? Por que eu sai de casa hoje? E é nesse estado semi deplorável que chego em casa e toco a campainha do meu vizinho umas dez vezes antes da porta se abrir e a uma loira exuberante me atender com uma camisa de desenho animado.
Então volto ao ponto que dormi com meu vizinho algumas vezes e assim superficialmente, ignoro o fato de amá-lo e não tentar estar em qualquer tipo de relacionamento sério e visto com bons olhos pela sociedade, pelo motivo que está em minha frente agora. Seus olhos apareceram por trás do ombro dela e então ele me atravessou o espaço que havia entre nós em um pulo, ignorando a mulher que não conseguia entender o que estava acontecendo ali.
- Aconteceu alguma coisa? Você não parece bem.
- Você ainda tem a chave da minha casa?
- Sim... Em algum lugar por aqui.
Virou as costas e entrou na sala para procura-la, enquanto isso permaneci parada exatamente na frente da mulher que também imóvel estava lá ancorada na porta. Me olhava sem parar enquanto eu só conseguia encarar o chão, querendo sumir daquele lugar. Até que tudo piora quando ela estende a mão.
- Renata, prazer.
- Prazer, Renata.
Então olhei para cima, ela não soltava minha mão e me olhava com o olhar debochado, esperando eu continuar e me apresentar. Não o fiz, apenas soltei minha mão respondendo com o mesmo olhar.
- Você mora aonde?
- Na casa ao lado.
- E suas chaves estão aqui...?
Ele reapareceu com as chaves na mão e um olhar superior para Renata, reprovando a loira pelo interrogatório venenoso. Então respondi olhando para ele.
- Vivo perdendo coisas importantes por ai. Por isso deixei a chave aqui, para quando precisasse...
Seus olhos que me encaravam mudaram e eu queria esquecer toda aquela noite, toda aquela mulher e apenas pular no colo dele e pedir encarecidamente que ele diminuísse seu nível de canalhice e me assumisse como mulher. Era pedir demais dele como era pedir demais daquela noite que ela acabasse bem. Virei o corpo sem me despedir, sem agradecer, só andar rumo a minha casa e voltar do lugar que eu definitivamente não deveria ter saído nessa noite.
Já com os saltos na mão, tentei escalar o muro com a saia na altura da blusa. Não me importava o que estava aparecendo e muito menos se alguém veria, afinal a cidade fantasmagórica me lembrava um filme de terror. Desisti de fazer essa semelhança quando lembrei o quão medrosa sou com horror hollywoodiano. Não vou chorar, não vou chorar, não vou chorar... Começou a chover, minha saia prendeu na parte mais alta do muro enquanto eu fiquei como uma carne pendurada no açougue. Comecei a gritar o nome dele, gritar, gritar, enquanto a chuva aumentava e engrossava sob meu corpo cansado que tentava cair e o pano rasgando cada vez mais, ainda me prendia e permanecia embolado ali. Assim eu fiquei segurando com as mãos, morrendo de medo e pedindo a Deus que ele ouvisse. Então a Renata olhou da janela e me viu, estourou sua risada pela rua inteira. Ele veio, olhou, se assustou e poucos segundos depois já estava debaixo da chuva só de cueca tentando me ajudar. Ele me olhou e riu, eu o olhei e ri também. Era a única coisa que caberia ser feita nesse exato momento. Pulou o muro e já na parte de dentro do quintal, estendeu os braços e eu pulei rasgando todo o resto da saia. Renata parou de rir enquanto encarava minuciosamente cada passo que dávamos. Eu a ignorei enquanto pulei no colo dele e ele aceitou. Me pegou no colo e me levou até a porta. Quando percebi que Renata não poderia nos ver mais, deixei minha cabeça recostas exausta em seu ombro. Ele pegou a chave, abriu a porta e me colocou no sofá já só com um dos sapatos na mão. De blusa, calcinha e completamente encharcada pela água que caia do céu.
- O que aconteceu?
Tentei responder, balbuciando entre lágrimas. Consumia metade das letras que haviam nas palavras e pouco se era entendido na minha fala. Fiz uma narrativa de 2 minutos sobre minha noite e acabei em um silêncio, seguido de uma respiração profunda e já aparentemente recomposta, disse.
- Volte para sua casa. Não quero acabar com sua noite... Mesmo achando que já acabei.
- Você não fez isso e eu vou ficar aqui com você.
- Não. De maneira nenhuma. Volte e tome um remédio para não ficar gripado.
- Vou ligar para lá avisando que você precisa de mim.
- Ei... Não. Não mesmo. Já me basta escutar todas os dias que você perdeu o show do Pearl Jam por minha causa! Não quero você colocando a culpa disso em mim também...
Rimos enquanto ele se levantava. Veio em minha direção e me beijou a testa.
- Qualquer coisa, me liga, está bem? Amanhã bem cedo eu venho aqui para ver como você está. Tome um banho quente e descase. Acho que você precisa.
Confirmei com a cabeça enquanto escutava o barulho da porta se fechando. Chorei mais do que toda a água que despencava sob a cabeça dele no caminho de sua casa. Imaginava seu corpo correndo até o outro corpo que vestia a camisa que estava comigo a uma semana atrás. A noite poderia ter sido melhor, mas também poderia ter sido pior. Ele podeira não estar na minha cama, mas havia demonstrado uma preocupação, carinho e cuidado que nunca fizera com mulher alguma. E depois de anos de convivência eu sabia que tudo aquilo haveria de se tornar algo maior, melhor e mais bonitos para nós dois. Bem mais bonito do que o estado em que me encontro. Deitada sob esperanças de um amor próspero.
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